Author
Eduardo Bueno
Category
History
Format
Kindle
Language
Brazilian Portuguese
Pages
288
Buy link
Amazon

Review

“A Coroa, a Cruz e a Espada” conta com detalhes primorosos a introdução do Governo-Geral no Brasil e da fundação da cidade de Salvador. Após relembrar o leitor dos acontecimentos que marcaram o fim do modelo das capitanias hereditárias, Bueno narra toda a preparação envolvida no estabelecimento do Governo-Geral.

Com instruções precisas – documentadas no Regimento do Governo-Geral – sobre como ocupar o território e sobre como tratar os nativos, Tomé de Sousa, o primeiro governador do Brasil, desembarcou na Baia de Todos os Santos. Mas diferente das expedições das capitanias hereditárias, a frota de Tomé de Sousa trazia uma estrutura completa para a instalação do funcionalismo da Coroa na colônia.

De todos os detalhes contados sobre o estabelecimento do governo, os mais interessantes são os da construção da cidade de Salvador e os da vida cotidiana. Primeira cidade planejada do Brasil, estima-se que sua construção custou um terço das receitas da Coroa. Salvador simboliza, então, a mudança de estratégia colonial portuguesa, que voltava-se para sua colônia ocidental em detrimento da deficitária e distante ocupação oriental.

Também presente na obra, os casos de corrupção (cartel de empreiteiros, evasão fiscal, favorecimentos) e de desprezo pelo meio ambiente trazem a tona antigos – e infelizmente não superadas – mazelas da sociedade brasileira. A poluição dos cursos de água deve lembrar o leitor da estarrecedora falta de saneamento básico no país.

Além da atuação de Tomé de Sousa na construção de Salvador e na segurança do território da colônia, Bueno também narra as atividades da Companhia de Jesus, com especial destaque a marcante atividade do jesuíta Manuel da Nóbrega. Figura central na fundação da Vila de Piratininga (futura São Paulo), o povoamento foi fundamental para a expansão portuguesa no interior do território feita pelos bandeirantes paulistas no século XVII.

Último livro de uma série de quatro livros (da Coleção Brasilis), “A Coroa, a Cruz e a Espada” conclui uma jornada de quase 150 anos da espetacular história das navegações portuguesas, do descobrimento do Brasil e do agitadíssimo período pré-capitanias hereditárias. Os ricos detalhes da fundação de Salvador e da atuação dos jesuítas no Brasil dão uma nova perspectiva sobre a vida no país no século XVI.

Some quotes

Além da ocupação e defesa do espaço brasileiro – e do sonho ainda vivo de encontrar riquezas minerais na América –, outro motivo decisivo para o estabelecimento do Governo-Geral foi de fundo fiscal. Afinal, a desordem generalizada das capitanias transformava o vasto território sul-americano na menos lucrativa das possessões ultramarinas de Portugal.


Entretanto, desde que o degredo se tornara a política oficial para ocupação dos novos territórios, os juízes passaram a aplicá-lo com crescente “facilidade”. A comutação da pena de morte em degredo virou praxe a partir do momento em que ficou claro que Portugal, com pouco mais de 1 milhão de habitantes, não dispunha de recursos humanos suficientes para ocupar suas vastas possessões coloniais.


Na frota de Tomé de Sousa, os condenados estavam sob a guarda de um certo Antônio Rodrigues de Almeida, “criado do rei”. Seu embarque e a distribuição pelos porões das seis embarcações hão de ter sido observados com temor e desprezo por seus futuros companheiros de viagem; afinal, além da ameaça potencial que representavam, alguns homens subiram a bordo com aparência medonha: além de postos a ferros (ou “ferrados”) muitos estavam “desorelhados”. O motivo para tal prática não constituía mera crueldade: os elementos mais perigosos tinham as orelhas cortadas para que pudessem ser imediatamente identificados, pois, uma vez no Brasil, viveriam em liberdade.


Entre os “outros” retardatários aos quais Álvares se referiu em sua carta, um deles estava, naquele momento, se dirigindo a pé desde a província da Beira, a cerca de 150 quilômetros de Lisboa, até o porto de Belém, nas cercanias da capital. Embora fosse um andarilho experimentado, havia sido convocado na última hora para se juntar à expedição. Seu atraso seria, portanto, ainda maior que o dos demais – a ponto de ele quase perder o embarque. O apressado caminhante era um padre jesuíta. Chamava-se Manuel da Nóbrega.


A colônia se desenvolveria sob o signo do dogmatismo: sem livros, sem universidades, sem imprensa e sem debates culturais – em síntese, sem a diversidade e o frescor do humanismo renascentista. “A inteligência brasileira viria a constituir-se submetida à direção exclusiva da Companhia de Jesus, sob a égide da Contrarreforma e do Concílio de Trento”, diagnosticou o crítico Wilson Martins em sua História da Inteligência Brasileira. “Esse desejo de perpetuar a ignorância (…) condicionaria as perspectivas mentais do Brasil por três séculos.”


Esses artesãos vinham sob o comando do “mestre da pedraria” Luís Dias, arquiteto de renome, responsável pelo projeto e encarregado de supervisionar as obras da primeira capital do Brasil. Da equipe de Luís Dias faziam parte 15 carpinteiros, nove ferreiros, oito serradores, oito telheiros, cinco caieiros, quatro serralheiros, quatro carvoeiros e três cavouqueiros, além de 16 pedreiros – um total de 72 profissionais que, tão logo se iniciassem as obras, seriam auxiliados por pelo menos 62 degredados. Esses artesãos ganhavam, em média, 1.200 reais por mês. Os degredados, cujas penas incluíam trabalhos forçados, recebiam ainda assim 330 reais por mês (abaixo do soldo mínimo de 360 reais).


Mesmo com a ausência quase total de mulheres, a esquadra de Tomé de Sousa era, como quase a maioria delas, um pedaço flutuante de Portugal. Transportava gente de todas as classes e todos os matizes, da fidalguia à arraia-miúda, e trazia intactos os desvãos da sociedade ibérica. Uma mera passada de olhos na lista de passageiros, identificando seus nomes e os salários que aqueles homens receberiam no Brasil, revela que a mesma desigualdade existente em Portugal estava sendo transplantada para os trópicos.


Como observou o professor Cid Teixeira, “em uma só cidade, dois tempos da história do Ocidente se encontram e se completam”, pois a fortaleza do Salvador e a vila que surgiu à sua sombra apresentam-se simultaneamente medievais e renascentistas. Embora seguisse um plano regular e racional, a fortaleza seria erguida à maneira dos castelos da Idade Média, na crista de uma montanha – em evidente anacronismo com as inovações renascentistas advindas da Itália que propunham a construção das praças de guerra em terrenos planos.


A extraordinária capacidade de adaptação dos portugueses aos rigores e exigências dos trópicos revela-se com clareza na forma como Salvador foi construída. As “amostras” trazidas por Luís Dias – tido como o “decano dos arquitetos brasileiros” – sugeriam um traçado regular e ordenado. Mas o projeto original seria pragmaticamente readaptado às irregularidades do terreno. Surgiriam, assim, as ruelas tortuosas, os largos e as pequenas praças nitidamente medievais, derramando-se em natural e pitoresca desordem por determinadas partes da encosta, como ainda hoje se observa na área do Pelourinho.


Mas algo não saiu a contento no ritmo ou na qualidade das obras, e no dia 20 de dezembro de 1549 ficou decidido que a muralha e seus baluartes seriam feitos não por trabalhadores assalariados, mas em regime de empreitada, como tantas outras obras da cidade que nascia. Como se davam tais empreitadas? As obras mais importantes ou urgentes eram postas em hasta pública e concedidas por “arrematação” ao empreiteiro que desse o menor lance. Em dia de sessão ordinária, o porteiro da Câmara – funcionário municipal cujo cargo era vitalício – botava o pregão. Depois, saía às ruas, com um ramo verde às mãos, apregoando, em voz alta, o menor lance que lhe fora oferecido. Como em um leilão, dizia: “Dou-lhe uma, dou-lhe duas e outra mais pequena…”, para em seguida entregar o ramo ao empreiteiro que houvesse feito a oferta mais vantajosa, caso não sobreviesse outra de menor valor. Aceito o lance, um escrivão lavrava o auto, assinado pelo arrematante, pelo porteiro e por oficiais da Câmara, que serviam de testemunhas. O auto valia como um contrato para a realização da empreitada, cujo custo não poderia exceder o orçamento previamente aprovado. No entanto, como se verá, o costume de superfaturar o valor das empreitadas iria se tornar comum na Bahia.


À medida que os prédios oficiais eram erguidos na coroa do morro, um amontado de choupanas e oficinas – “uma improvisada rancharia” – ia surgindo quase espontaneamente na beira da praia. Dessa forma, para além de qualquer planejamento racional, Salvador foi criando, orgânica e simultaneamente, sua Cidade Alta e sua Cidade Baixa. Transplantava-se assim para os trópicos um conceito urbanístico que já se solidificara no reino – em Lisboa e no Porto, por exemplo – e que era de nítida influência muçulmana.


Enquanto na Praia as casas se voltavam para o mar, dando as costas à falésia, no alto as construções se dobravam sobre a cidade. As casas eram tão baixas que um indivíduo de estatura mediana “mal podia ficar em pé dentro delas”. Repetiam, nesse sentido, o padrão utilizado no reino, onde o pé-direito raras vezes ultrapassava 1,70 metro. Segundo as investigações do arquiteto português Manuel Sílvio Conde, mais da metade das casas de Lisboa no século XVI tinha apenas “entre 11 e 30 metros quadrados de área”.


Não foram apenas as águas da Cidade do Salvador que logo se poluíram. Suas ruas também ficaram cobertas de lixo, dejetos e esgotos, repetindo o que era usual no reino. “O lixo amontoava-se nas ruas e ao pé das casas e só era removido para o adro das igrejas ou para os terrenos públicos quando, por muito acumulado, dava para incomodar.” A Câmara ameaçava os infratores com multas, mas isso só os fazia jogar o lixo nas ribanceiras e baixios.


Escrevendo em 1584, Gabriel Soares de Sousa calculou em 400 mil cruzados (ou 160 milhões de reais) a quantia investida por D. João III na expedição de Tomé de Sousa e nas obras iniciais da cidade. Frei Luiz de Sousa afirmou, em 1580, que outros 300 mil cruzados (ou 120 milhões de reais) foram gastos na primeira armada de socorro enviada a Salvador em 1550 sob o comando do figaldo Simão da Gama e Andrade. Investigadores modernos, baseados em fontes documentais e em suposições verossímeis, calculam em cerca de 1 milhão de cruzados (ou 400 milhões de reais) o custo da construção da Cidade do Salvador – o equivalente a um terço das receitas da Coroa.


Que o estímulo sexual era grande não restam dúvidas: as nativas circulavam pela cidade peladas e depiladas. Conforme o relato do também jesuíta José de Anchieta, não apenas andavam nuas como “não sabem negar-se a ninguém, mas até elas mesmas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes, porque têm por honra dormir com os cristãos”. Nóbrega, que considerara o problema gravíssimo, já havia solicitado esmolas de roupa: “Ao menos uma camisa para cada mulher, [pois] não parece honesto estarem nuas entre os cristãos na igreja e quando as ensinamos.”


Não se tratava, porém, de mera questão de apetite sexual. O fato é que os portugueses amancebados também obtinham comida e serviços em troca de contatos ocasionais com as “negras da terra”. Pelo que escreveu Pero de Magalhães Gândavo em 1576, a grande maioria dos colonos tratava de adquirir escravos mal desembarcava na terra: “Por pobres que sejam, alcançam, cada um, dois pares ou meia dúzia de escravos, que pode, um por outro, custar pouco mais ou menos até dez cruzados [ou 4 mil reais]. Os mesmos escravos índios buscam de comer para si e para os senhores, e desta maneira não fazem os homens despesas em mantimentos nem com seus servos nem com suas pessoas.” Além disso, as nativas “faziam todo o trabalho da casa, a farinha de mandioca e os tecidos de algodão”. As “negras da terra” não eram, portanto, apenas instrumentos de prazer. Eram instrumentos de trabalho.


Um dos argumentos de Nóbrega para justificar a escravização dos indígenas estava relacionado ao fato de andarem nus. Por ter escarnecido da nudez de Noé, seu filho Cam foi exilado e condenado à servidão. Em um texto clássico, seu ríspido Diálogo da Conversão dos Gentios, escrito em 1558, Nóbrega afirmaria que, por serem descendentes de Cam, os índios do Brasil “ficaram nus e têm outras mais misérias”. O pecado de Cam, convém ressaltar, legitimava também a escravização dos africanos. Além disso, Nóbrega acreditava na teoria aristotélica da “servidão natural dos povos inferiores”.


Embora tanto o Império Inca quanto a prata de Potosí já tivessem sido descobertos e conquistados pelos espanhóis, em 1539 e 1545, os portugueses de São Vicente ainda alimentavam esperanças de encontrar riquezas semelhantes, até porque não estavam convictos de que o Rei Branco e a serra da Prata das lendas fossem, respectivamente, o Inca e a fabulosa mina de Potosí. A rede de trilhas indígenas que partia de São Vicente em direção ao planalto e de lá mergulhava nos mistérios do oeste funcionava como estímulo permanente para os colonos instalados na Baixada Santista.


“Para o sustento destes meninos [do colégio de São Vicente], a farinha de pau era trazida do interior, da distância de 30 milhas [90 quilômetros]. Como era muito trabalhoso e difícil por causa da grande aspereza do caminho, ao nosso padre [Nóbrega] pareceu melhor mudarmo-nos para esta povoação de índios que se chama Piratininga. Isto por muitas razões: primeiro por causa dos mantimentos; depois, porque se fazia nos portugueses [de São Vicente] menos fruto do que se devia [ou seja, se convertiam menos colonos do que os padres desejavam…] e especialmente porque se abriu por aqui a entrada para inúmeras nações sujeitas ao jugo da razão [grupos de indígenas mais receptivos à pregação jesuítica].”


Não existem relatos documentais do que se passou durante os três primeiros meses do novo governo, mas registros pesquisados pelos historiadores baianos Teodoro Sampaio e Edison Carneiro permitem afirmar que, tão logo assumiu o posto, D. Duarte iniciou a distribuição de cargos públicos entre os amigos que o acompanharam naquela incursão aos trópicos.